terça-feira, 2 de setembro de 2014

Pra contrariar a quietude

Silenciosa visita

Era noite. Certamente uma noite diferente. Noite cheia do rumor silencioso e quieto de uma incerteza que ainda pulsava em seu coração. Foi, mas voltou. Recriou coragem e foi novamente. E se alguém visse? O que poderia acontecer?

            Caminhou ocultando o rosto por aquele trecho escuro da estrada de Jerusalém.

Avistando a casa, que parecia aconchegante, o fino aristocrata Nicodemos parou em frente a porta com receio. E, esperando cinco minutos que mais pareciam cinco horas viu o Amor se abrindo para ele.

No terceiro capítulo do sempre belo Evangelho de João podemos conhecer um pouco desta figura enigmática e inalterável, pelo menos no princípio, chamado Nicodemos. 

             Resolveu ver o Cristo com motivos, afinal seria quase possível manter-se indiferente a Ele. Se analisarmos estes Evangelhos, muito já havia ocorrido: João Batista já havia visto Jesus e anunciado o “Cordeiro de Deus” no Jordão (Jo 1,29), Jesus havia chamado os doze discípulos (Jo 1,35-51), transformado a água em vinho em Caná (Jo 2,1-12), e expulsado os comerciantes do Templo de Jerusalém (Jo 2,13-25).  

A alma inquieta de Nicodemos precisava vê-lo. Havia uma força que o impelia nesta noite, a necessidade de viajar pela linha divisória do Conhecido e do Desconhecido. Mas por que o medo? Por que o temor? Seria a vergonha dos judeus? Imaginemos que sim.

Culpado, na ida e na volta

Um psiquiatra austríaco, Victor Frankl, fez durante sua vida estudos muito interessantes acerca das contrariedades que a vida traz, bem como foi pai de uma nova forma de entendê-las, a logoterapia, que tem o foco na busca do sentido.

Em sua teoria do otimismo trágico, Frankl explica o otimismo do ser humano apesar da chamada “tríade trágica” que é composta por dor, culpa e morte.

Semelhante a este estudo psiquiátrico, Nicodemos saiu de casa naquela noite em busca de sentido. Encontrou, ouviu, respeitou a Verdade humanizada em sua frente naquela casa e saiu com culpa. Talvez mais escondido saíra do que entrara. A conversa mais pareceu uma entrevista, cheia de perguntas e respostas. E Cristo, talvez pelo correr da hora, encerrou o papo desta forma:

“De tal modo Deus amou o mundo, amigo Nicodemos, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer tenha a vida eterna.”

A experiência desta noite não findou. Sabe-se através dos Evangelhos que Nicodemos não se juntou a Jesus, apesar de querer sempre saber quais eram as novidades quanto aquele Homem. Nicodemos passou três anos silenciosos, vivenciando uma quietude que não permitia revelar a ninguém sua visita ao Homem.

Repreensão de Caifás

Podemos comprovar o medo de Nicodemos, quando o caldeirão já estava quente: Jesus, com sua popularidade no auge, irritou Caifás. E em meio a vários argumentos entre os doutores da lei, ele falou: “Nossa Lei acaso condena algum homem antes de o ouvir e conhecer o que ele faz?” (Jo 7:51). Caifás o repreendeu: “Nicodemos, porventura tu és Galileu? Se informe bem e verás que da Galiléia não saiu profeta algum” (Jo 7:52).

O medo voltou a Nicodemos, que sentou-se calado. Mal ele saberia qual a próxima vez que O veria.

Pra contrariar a quietude

Semanas depois, Jesus, totalmente entregue ao Pai, morre na cruz.

E Nicodemos, pra contrariar a quietude que o acompanhou durante todo esse tempo, aparece. Como quem falasse:

“Senhor, e este fundo abismo que me apavorou quando me inclinei sobre mim mesmo? Tu tão puro! E os egoísmos que me paralisaram? Tu tão generoso! Por que me olhaste assim, por que me amaste?”

Precisava recuperar o tempo perdido, precisava ajudar. Lembrava do olhar insistente de Jesus naquela noite, três anos antes. Ao invés de cair em lamentos, como os discípulos de Emaús antes de reconhecê-lo, não. Usou a culpa como saída. Não perdeu dias pensando sobre sua covardia, mas sim procurou ajudar como podia.

Juntamente com João Evangelista e José de Arimatéia cuidou do sepultamento de Jesus. E aí teve o primeiro gesto de aceitação de Cristo. Com aval de Maria e Madalena, Nicodemos mais os dois homens fizeram essa tarefa inesperada de descê-lo da cruz.

Olhando Jesus crucificado, inerte, uma lágrima escorreu em Nicodemos, fruto do lamento por suas afrontas e sua morte.

Cuidando do cadáver de Jesus demonstrou um profundo amor, pois nada tinha a ganhar, nem esperar. Que pode um morto fazer em retribuição a uma ajuda? Mesmo sem sinais da ressurreição do Filho, a fraqueza de Nicodemos estendeu a mão para a grandeza de Deus, e assim enxergou o que não conseguira ver antes, ou conseguiu ver o que a culpa lhe vendava.

Só o amor explica

Ó mistério inefável, que só o amor explica. Nicodemos entendeu, sem esperar nada em troca, em que consiste a vida eterna. 

Um comentário:

  1. Que blog tão abençoado! Vou compartilhá-lo no face, pois tuas reflexões são maravilhosas. Rezo para que eu tenha sempre a alma inquieta de Nicodemos. Que, apesar da minha humanidade tosca, eu possa cada vez mais perseguir e refinar meu amor pelos outros e por mim mesma. Que a venda que me cega às vezes caia a cada vez que invocar o nome do Senhor. Amém. bjo

    ResponderExcluir