Anoitecia em Jerusalém.
O fim de uma incomum tarde chegava. João havia sido encarregado por Jesus para
ajudar na arrumação do cenáculo.
O mais novo dos amigos
de Jesus estava inquieto. Sentava, levantava. Queria saber o porquê da demora
dos seus amigos. Já estavam atrasados! A angústia humanizada de um jovem com
cerca de vinte anos parecia aflorar, especialmente nesta data.
“Converte-te agora, quando ainda te sentes
jovem... Como é difícil retificar quando a alma envelheceu!”
(São
Josemaría Escrivá)
Tantos eram os caminhos
que o coração conduzia a seus amigos de infância: muitos haviam se tornado como
seus pais, pescadores da Galiléia; outros ainda se arriscavam no serviço de
carpintaria; e alguns focavam no comércio.
Mas ele não. Ele era
diferente. Uma certa vez enquanto consertava as redes no mar da Galiléia,
surgiu aquele estranho Homem, tão familiar, mas tão misterioso... Sua doce voz
encantou o menino João que não pensou duas vezes antes de deixar as redes, e
levantar-se para segui-lo, junto com seus irmãos.
Como falar não para
Cristo? Sua voz tocava no íntimo do ser. Seu coração batia forte cada vez que O
ouvia! “Verdadeiro Amigo, este Homem de
Nazaré...”, pensava João enquanto viajava em seus pensamentos.
Segundos depois, João
ouviu vozes. Eram eles. Finalmente, Cristo entrou no cenáculo onde seu amigo
havia preparado aquela que seria a última das ceias que comeria com seus apóstolos.
O ambiente não parecia
muito bom. Jesus, sempre humano, carregava um profundo olhar para com cada um
deles. Pedro, o língua afiada, até tinha murmurado para Tiago: “O Mestre está diferente, avoado...”.
Celebrariam a Páscoa
judaica, data que lembra a libertação do Egito, lembrando dos laços reiterados
com Deus. Rituais que não poderiam ser deixados de lado, afinal Jesus não havia
vindo passar uma “borracha” em tudo o que se acreditava, e sim aperfeiçoar,
fazer novo, tornar novo!
A última ceia |
Jesus realmente estava
mais quieto que os outros dias, mas não avoado como citou Pedro. Tinha motivos.
Sentia o que ia acontecer.
Sentaram-se a mesa numa
quietude indecifrável.
Às vezes o mais
profundo silêncio nos faz refletir. É através do silêncio que conseguimos
experimentar a vida no íntimo do que somos, no íntimo do nosso ser.
Quando a
saudade bate forte no peito, não há quem contenha as lágrimas ao fim do dia,
quando aquele silêncio solitário se instala em nossos corações.
É a chamada “beata solitudine”, ou “abençoada solidão”. Quando estamos só nós e nossa consciência. Só
nós e nosso coração. Só nós e Ele.
“Quanto mais se resiste no silêncio, menos se
sente o mal.”
(Santa
Teresa Benedita da Cruz)
E, amigos de Emaús, o
silêncio realmente imperava naquela noite. Devido a seriedade que Jesus
mostrava em alguns momentos, dificilmente um discípulo o perguntaria o por que
disto, ou até faria uma piada. Quem sabe pelo respeito que tinham com o Mestre.
Jesus então, em uma atitude
visivelmente planejada, foi para o fundo do cenáculo e pegou um bacio. A agonia
de João o fez perder a fome daquela linda ceia e pensar: “Mas o que está acontecendo?”
O Evangelho que este
mesmo garoto, João, escreveu anos depois conta que neste momento “Jesus os amou até o fim”. Monsenhor
Bianchini, no entanto, lembrava que pela tradução exata do latim “In extremis dilexit eos”, teríamos: “Jesus amou-os até a extremidade de um Deus ser capaz de
amar”¹.
Amar até o limite que
um Deus pode amar! Se Deus é amor, isto significa TODO amor que já existiu
nessa vida. Como os amava... (como nos ama!)
A um por um, esse
silencioso e diferente Cristo lavava os pés. No começo, nada entenderam. A
angústia que João carregava no peito fazia bater forte seu coração. Sentia
medo. “Se acalmem, vocês entenderão...”
repetia Jesus.
Alguns se emocionaram,
alguns se surpreenderam, e um ficou indiferente. Judas, que cada vez mais se
afastava de Jesus, parecia não se importar. Por trinta moedas de prata beijaria
o rosto daquele que um dia tanto lhe queria bem.
A Indiferença de Iscariotes |
Quando nos fazemos
indiferentes diante de Deus, arranjamos justificativas para isto: “Já tive uma fé muito grande! Mas não
consegui aquela vaga de emprego, apesar de orar muito.” Ou até: “Eu ia à Igreja todo domingo, até perceber
que perdia muito tempo por esse Deus que nada me deu em troca!”.
É a falta da entrega, a
falta da oração, a falta do “sim” que Ele nos pede. Com uma boa dose de “não’s”
vamos nos tornando indiferentes. E o rumo que antes era “certo de peito aberto”, se torna um mundo de incertezas e
decepções.
Talvez Judas não tenha
concordado com Jesus em algum momento. Talvez quisesse ser maior. Enquanto nos
outros apóstolos, o “estar com Deus” era um misto de carinho e paciência, Judas
em sua “abençoada solidão” não
agüentava mais ouvir Aquela voz latejar em seu ouvido, mesmo quando estavam
todos dormindo.
Horas depois, foram,
Jesus e os onze (Judas já tinha saído), ao Getsêmani, um lindo jardim no Monte
das Oliveiras. A escuridão do local os fazia bocejar, após este misto de
emoções que tomou conta da noite. Ainda mais para João, que havia passado a
tarde arrumando o cenáculo para todos.
Jesus trazia tanta
segurança! Para João, o menos experiente, talvez o sentimento ultrapassasse o
limite da amizade, ultrapassasse o sentido do companheirismo. Talvez Jesus
fosse para João como um verdadeiro pai terreno. Zebedeu e Maria Salomé com
certeza eram pais responsáveis, que muito amavam seus filhos. E João e seus
dois irmãos também eram muito agradecidos, mas estar com Jesus era confortador.
Sentir a doçura de sua Mãe, então, era acolhedor. Maria gostava de João como se
fosse um filho. Aliás, quem não gostava deste menino que tinha um coração de
ouro?
Se instalaram no
jardim. “Minha alma está triste até a
morte”, disse Jesus, como quem toma todas as dores do mundo: a minha, a
sua. A dor que nem sentimos ainda hoje, mas que amanhã Ele sabe que passaremos.
As dores que virão, os problemas que surgirão quando tudo parecerá estar bem.
No Getsêmani, Ele assumiu nossas tristezas!
“Mas, como poderia Jesus assumir minha
tristeza se não me conhecia? Como poderia carregar para si meus sofrimentos se
estou há mais de dois mil e treze anos de distância dele? Diz a Escritura: ‘Para Deus mil anos são como um dia, um dia
é como mil anos!’ (2Pd 3, 8-9)”
(Vilmar
Dal-Bó)
João, com seu corpo
muito cansado, deitou ao lado de Tiago e Pedro enquanto Jesus orava. O que aconteceria
daqui pra frente? Seus olhos estavam fechando, fechando, e de repente se flagrou
em um sonho:
“Em
uma linda tarde de outono estavam nós, os apóstolos e Jesus. Nós sentados, só
escutando e Ele falando, falando, falando. Parecia ter firmeza nas palavras e
muita disposição. Após contar a parábola do Filho Pródigo, a minha preferida, o
Mestre sorria de uma forma linda. Ternura no olhar, na boca e no coração...”
Discípulos não resistiram ao sono |
Mas, a mesma voz do
sonho o acordara, com um tom de decepção. Não estava em uma linda tarde de
outono. Não estava na calmaria e na certeza, e sim tinha pegado no sono naquela
escuridão que só o Getsêmani o proporcionava. Jesus exclamou: “Basta eu sair e vocês já dormem? Não podem
vigiar uma só hora?”
Eis que ouviram um
cintilar de espadas, uma caminhada com diversos homens. De diversas idades, de
diversas alturas. O mal vem de todas as formas, de todos os jeitos. E dentre
estes homens, João observou atentamente: “Judas?
Mas... como?”
CONTINUA...
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